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BOLETIM CLÍNICO - número 2 - outubro/1997

Boletim Clínico | Psicologia Revista | Artigos

6. A Música na Relação Psicoterapeuta-Paciente(1) - Danielle Pisani de Freitas(2)

De um olhar comprometido tanto com a música quanto com o âmbito da psicologia, surgiu a questão discutida em meu TCC:

A música como possibilidade na relação psicoterapeuta-paciente.

Até o inicio de 1996, quando eu iniciei os núcleos de estágio do curso de Psicologia da PUC e optei pela área clínica (fenomenologia e psicofísica), a questão da música como uma possibilidade na relação psicoterapeuta-paciente só poderia ser discutida no plano teórico. Eu nunca havia trabalhado como psicoterapeuta.

Entretanto, no núcleo de psicofísica, sob a supervisão da Psicóloga e Professora Drª Regina Celia Gorodscy, atendi uma criança de 4 anos, Marco, encaminhado com a queixa de dificuldades “ditas emocionais” no aprendizado da fala.

Iniciei o contato com Marco em junho de 1996. Desde a primeira sessão, percebi que o meu “olhar” e a minha “escuta” terapêutica carregavam em si a influência de uma sensibilidade musical, de uma sensibilidade ao sonoro que não é palavra. Apesar de Marco não ter uma fala clara nem articulada, já na primeira sessão abriu-se a possibilidade de uma comunicação sonora entre nós dois.

Nas três primeiras sessões, o material utilizado com Marco foi a caixa lúdica, montada com materiais que a clínica da PUC tradicionalmente oferece para esse tipo de trabalho. Mas, a partir do meu envolvimento com a questão da música na relação paciente-psicoterapeuta, e da relevância do elementos sonoros que apareceram na terceira sessão, pensei que seria interessante introduzir, na sessão seguinte, instrumentos musicais como material do jogo lúdico.

Ciente do meu interesse a respeito das possibilidades de uso do sonoro musical num processo psicoterapêutico, pretendi, por meio do meu trabalho de conclusão de curso, pesquisar e refletir a respeito das peculiaridades do comunicar musical, ilustrando essa reflexão com uma análise fenomenológica do sonoro presente em três dos meu relatos das sessões de ludoterapia com Marco.

Principais idéias discutidas no percurso teórico do trabalho: A música em foco

A matéria-prima da música é o som e o silêncio. Som e silêncio se alternam, se complementam de forma intencionalmente organizada no contínuo espaço-tempo da música. O organismo do homem é a forma mais espontânea de música. Mesmo sem perceber, o homem vive em contato com a alternância som-silêncio das batidas de seu coração, com os ruídos de seus intestinos, dos movimentos articulares e com o timbre de sua própria voz.

Na perspectiva da física contemporânea, o som é produzido pela vibração de corpos. O som da voz, por exemplo, é produzido pela vibração das cordas vocais, que se propaga no ar sob a forma de onda. A onda sonora é "um sinal de movimento que passa através da matéria do ar, modificando-a e inscrevendo nela, de forma fugaz, o seu desenho."(Wisnick,1948,p15-16)

David Tame (1994, p29-33)afirma que sempre que estivermos no campo audível da música, sua influência atuará constantemente sobre nós -acelerando ou retardando, regulando ou desregulando as batidas do coração; relaxando ou irritando os nervos; influindo na pressão sangüínea, na digestão e no ritmo da respiração.

O ouvido, assim como os outros órgãos do sentido, a pele, e o sistema nervoso, são originados de um mesmo tecido embriônico- a ectoderme. (Anzieu, 1989, p3-13) Existe, portanto, uma ligação íntima e primitiva entre o sistema nervoso e o ouvido. Por isso, o contato com sonoro tem como repercussão, por exemplo, reações emocionais.

As ondas sonoras são captadas não só pelo ouvido, mas também pelas células sensitivas do corpo todo. Talvez pelo fato de o ouvido ser o órgão mais sensível às ondas sonoras, a sensação corporal tátil da vibração do som tenha ficado em segundo plano para muitos. Os deficientes auditivos parecem estar mais atentos a esta propriedade vibratória do som. Nadir Cervelline (1986) descreve em tese de mestrado a sua experiência de utilização da música no trabalho com crianças com deficiência auditiva. Conta que as crianças eram capazes de acompanhar o ritmo da música, de diferenciar uma música de outra e de desenvolver uma preferência musical, baseando-se nas vibrações da música que sentiam pelo tato.

Música e linguagem

Segundo Adorno (1982,p1-6), alguns gestos musicais são derivados da fala. A entonação, a pontuação, a exclamação, a interrogação, o tom da voz, são elementos da linguagem verbal que encontram equivalentes na música. Beethoven, em sua composição Opus 33, explicita essa característica da música pedindo para que essa seja tocada “parlando”.

Música e linguagem são organizações sonoras que servem ao homem como veículos de expressão. No entanto, não se pode conhecer precisamente o significado daquilo que foi exprimido, dito por meio da música. A organização do som na música é uma cadeia de significantes sonoros que não tem uma conotação intrínseca. Ou seja, não existe dicionário musical que possa definir o sentido de uma música. O que se diz, via música, é revelado e velado ao mesmo tempo.

Mas... O que dizer, por exemplo, a respeito da linguagem poética musicada em uma canção?

“ Uma lata existe para conter algo
mas quando o poeta diz: Lata pode estar querendo dizer o incontível Uma meta existe para ser um alvo mas quando o poeta diz: Meta pode estar querendo dizer o inatingível Por isso não se meta a exigir do poeta , que determine o conteúdo em sua lata, na lata do poeta tudo-nada cabe, pois ao poeta cabe fazer com que na lata venha a caber o incabível. Deixe a meta do poeta, não discuta deixe a sua meta fora da disputa meta dentro e fora: Lata absoluta Deixe-a simplesmente metáfora” Gilberto Gil Essa poesia de Gilberto Gil é cantada numa melodia (sucessão de sons musicais combinados), num determinado ritmo (duração e acentuação dos sons e das pausas), acompanhada por uma harmonia (combinação de sons simultâneos-acordes) - formando uma totalidade. A canção é a justa combinação da música e da linguagem verbal. É como se a música da canção apontasse para o modo preciso de entonação que o poeta escolheu para declamar a sua própria poesia.

Mas... o que seria a musica de Gilberto Gil se não estivesse colada à poesia acima transcrita? Será que a música, a pura entonação sem palavras, nos permitiria compreender o que compreendemos na entonação musical da poesia? Penso que não. A poesia entoada musicalmente revela o conteúdo da expressão do poeta de forma mais explícita do que a musica sem verbo.

No entanto, essa poesia de Gil clama justamente para que não se exija do poeta a precisão demonstrativa de suas palavras. A linguagem poética é essencialmente metafórica. Uma lata existe para conter algo, mas na poesia pode estar querendo dizer o incontível. A metáfora não determina o conteúdo da “lata”, apenas aponta um sentido. A palavra não deve ser o recipiente onde se enlata o conteúdo do que se pretende ser dito. O que se pretende dizer se encontra além do que foi dito, além da palavra. “Na lata do poeta tudo-nada cabe, pois ao poeta cabe fazer com que na lata venha a caber o incabível”.

O exemplo da canção de Gil aponta para uma situação em que a poesia parece estar dizendo mais a respeito da intenção do compositor do que a música. Será que existem situações em que o oposto acontece? Ou seja, que a intenção seja mais explícita na música de uma canção do que na sua letra?

São de conhecimento geral as folclóricas cantigas de ninar “Boi da cara preta” e “Cuca”. Muitas mães brasileiras já acalantaram seus filhos cantando carinhosamente essas canções. Será que elas refletiram a respeito do que é dito nos textos destas canções?

“Boi, boi, boi, boi da cara preta pega essa menina que tem medo de careta” “Nana neném, que a Cuca vem pegar Papai foi pra roça, mamãe já vai voltar”

Mães fazem os filhos dormirem sob a ameaça de monstros como a Cuca e o Boi-da-cara-preta.... E o que me impressiona é que as crianças dormem!!! Pergunto-me o que as faz dormir. Será que as mães ao cantarem essas cantigas para os seus filhos têm realmente a intenção de assustá-los? Ou intencionam carinhosamente acalantá-los com a suave melodia dessas canções?

Ana Lúcia Cavani Jorge(1988) em seu livro “Acalanto e Horror”, estuda o conteúdo lingüístico e psicanalítico frente a ambigüidade horror-ternura presente nas cantigas de ninar. Ana Lúcia afirma que fez uma enquete inicial e informal a respeito do motivo pelo qual as cantigas de ninar faziam as crianças adormecerem. Essa enquete apontou para alguns caminhos: “seria a monotonia do ritmo que faria adormecer; ou a doçura da melodia; ou o aconchego do colo...”. Essas hipóteses senso-comum parecem ignorar o conteúdo terrorífico das letras destas canções, dando uma especial atenção às características da música (melodia e ritmo).

O bebê nasce num mundo de palavras, de significantes fonéticos cujos significados usuais desconhece. O bebê escuta o som da palavra sem ter se apropriado do significado implícito a ele. Parece que o bebê se satisfaz apenas com a música da linguagem que a mãe interpreta.

O universo sonoro e a constituição de um eu

A voz da mãe é a da música; a música, é da voz da mãe.”- Piérre Paul Lacas

Didier Anzieu (1989, p181-199), em seu ensaio “O envelope sonoro”, relembra os fatos estabelecidos em relação à audição e a fonação do bebê. Diz que o bebê além de se ligar aos seus pais, desde que nasce, por um “Eu pele”, também está ligado aos seus pais por um sistema de comunicação audiofônico.

Lacan(1971), em seu trabalho “O estádio do espelho”, afirma que “o Eu se edifica como outro sobre o modelo da imagem especular do corpo inteiro unificado”. Winnicott (1971),descreve uma fase anterior em que o rosto da mãe fornece o primeiro espelho à criança, que constitui o seu Eu (self) a partir do que lhe é refletido. Tanto Lacan quanto Winnicott enfatizam que as imagens visuais são constitutivas do Eu.

Didier Anzieu (1989, p194-199) pensa a existência de um espelho sonoro. “Antes que o olhar e o sorriso da mãe que o alimenta e cuida produzam na criança uma imagem de si que lhe seja visualmente perceptível e que seja interiorizada para reforçar o seu Self e esboçar o seu Eu, o banho melódico (a voz da mãe, suas cantigas, a música que ela proporciona) põe à disposição um primeiro espelho sonoro do qual ele se vale a princípio por seus choros que a voz materna acalma em resposta), depois por seus balbucios e, enfim por seus jogos de articulação fonemática.”

Anzieu ilustra, por meio da mitologia grega, a inter-relação entre o espelho sonoro e o visual. Lembra que a lenda de Narciso está ligada à lenda da Ninfa Eco. Jovem, Narciso desperta paixões em numerosas ninfas, às quais permanece insensível. A ninfa Eco também se apaixona por ele e não é correspondida. Desesperada, retira-se para a solidão, perde o apetite e emagrece tanto que, de sua pessoa resta apenas uma voz que geme, que repete as últimas sílabas das palavras que são pronunciadas.

Durante esse tempo, as jovens desprezadas por Narciso conseguem a vingança de Nêmesis. Depois de uma caçada num dia muito quente, Narciso se inclina sobre uma fonte para saciar a sede e vê sua imagem tão bela que dela se torna amante para sempre. Paralelamente a Eco e sua imagem sonora, Narciso se desliga do mundo, entregando-se a sua própria imagem visual e deixando-se fenecer.

Penso que a ninfa Eco poderia representar a amorosa resposta sonora da mãe à manifestação sonora do bebê. Desde o nascimento, o bebê estaria em contato com esse espelho sonoro. O seu choro teria a voz de mãe como sonoridade especular.

Talvez a música seja o recuperar de algo muito primitivo no humano: O mergulho no sonoro da voz da mãe; num sonoro que é o som da mãe dissolvido no som de um Eu que ainda não pôde se escutar. Mas desde quando o Eu se escuta? Desde quando é capaz de fazer música?

Teca Brito, educadora musical, diz que, enquanto para o adulto a prática musical pode ser importante por permitir o resgate da possibilidade de jogar, de brincar, para criança fazer música é atividade natural e espontânea, que vai ao encontro de suas necessidades e de sua própria maneira de interagir com o mundo.

Se o jogo musical é, para a criança, um modo fluente de interação e de expressão, porque não encará-lo como possibilidade na psicoterapia infantil?

O Sonoro na Psicoterapia Infantil

Não é mero acaso o fato de a psicoterapia infantil utilizar o recurso do brincar para compreender o que a criança diz nas linhas e entrelinhas de seu discurso lúdico. Enquanto o adulto discursa falando, a criança discursa brincando?

A psicoterapia de adultos atribui ao discurso sonoro um lugar de destaque. É por intermédio da escuta do som, do sentido das palavras, e da entonação da fala que o trabalho psicoterapêutico costuma se estruturar. A psicoterapia infantil, por outro lado, talvez pelo fato de prever a precariedade da linguagem verbal das crianças, dá mais ênfase ao ato, aos gestos, à imagem do brincar como reveladora do dito infantil.

Penso, entretanto, que o sonoro está sim presente no discurso infantil. A criança fala enquanto brinca. Talvez, para os ouvintes acostumados apenas com o sonoro logicamente articulado e carregado de significados implícitos, o sonoro infantil diga mesmo muito pouco. No entanto, parece-me que, para os apreciadores da música, da poesia, e do modo de ser humano, o sonoro faz sentido independentemente de uma organização lógica e de um significado intrínseco.

Ainda que o sonoro da criança não seja palavra, penso que ele deve ser escutado pelo psicoterapeuta como uma forma de expressão, como um improviso sonoro que revela um sentido para o brincar da criança. A criança faz música enquanto brinca.

Virginia Axline(1964), em seu livro “Dibs: em busca de si mesmo”, conta, por meio da descrição das suas sessões de ludoterapia com Dibs, a estória de uma criança marcada por profundos traumatismos , que pôde desabrochar com uma personalidade forte e saudável.

A leitura desse livro foi-me indicada como indispensável para o conhecimento acerca das possibilidades da prática da Ludoterapia Infantil. Durante a leitura, surpreendi-me com o fato de que Dibs, durante suas sessões com Axline, teve, em vários momentos, a iniciativa de fazer música- e fez. Dibs inseriu o fazer música no contexto de seu brincar. Utilizou a musica para dizer a respeito de si mesmo. Transcreverei alguns trechos de sessões em que Dibs utilizou recursos musicais para dizer, comunicar sonoramente, enquanto brincava:

"- Formarei uma colina e nela subirei, falou. E brincarei que os homens estão lutando.

Num salto afastou-se da areia e atravessou a sala correndo para apanhar o tambor. Sentou-se nas bordas do depósito de areia. Começou a tocar.

- Tambor engraçado! Oh! tambor tão cheio de sons. Sons suaves. Sons fortes. Sons lentos. Bate, bate, bate tambor. Briga, briga, briga, respondeu-me o tambor. Vem, vem, vem. Segue-me, segue-me, segue-me, continua a falar.

Colocou o tambor cuidadosamente na borda do depósito. Retornou à areia. Iniciou a construção de uma montanha.

- Agora vou trabalhar.Vou construir um monte muito alto...."(p 134,135)

Dibs planeja uma brincadeira: a construção de uma colina e a luta entre homens. Antes de construir o “monte” parece ter representado uma “briga” na sua conversa com o tambor. No início, Dibs pareceu estar fazendo uma espécie de ode ao tambor: “Tambor engraçado! Oh! tambor tão cheio de sons...” Em seguida, Dibs “batendo no tambor”- tocando- convida o tambor para bater.

O tambor “responde” soando, e chamando Dibs para brigar e para o seguir. Só então Dibs volta à areia para executar a construção que havia planejado. Parece-me que o tocar do tambor para Dibs, nesse momento, assumiu também a função de um ritual. O toque do tambor, e o diálogo entoado junto ao toque parecem ter preparado Dibs para iniciar o seu trabalho de um modo especial - sacralizado: “Agora começarei a trabalhar....”

Durante esta sessão Dibs usou novamente o tambor:

“- Um, dois, três, quatro. Quatro horas! Tenho um relógio que me diz as horas. ......Meu relógio é despertador e toca as horas. Dou corda nele. Também tenho um relógio de pulso e um rádio relógio. Pegou, de novo, o tambor e tocou-o suavemente.

- Estou tocando o tambor por papai

- Então estes toques lentos são para o seu pai?

- Sim, concordou Dibs.

- E o quê que o tambor lhe diz agora?

- Durma. Durma. Durma, falou, batendo no tambor com deliberação. Durma. Durma. Durma. DURMA. DURMADURMADURMADURMA.

Enquanto pronunciava as sílabas, gradualmente fazia crescer o ritmo aproximando as batidas. Terminou com um vigoroso soar do tambor. Dibs sentou-se e inclinou a cabeça. O tambor silenciou. Levantou-se e tranqüilamente guardou-o no interior do teatro de fantoches.

- Coloca o tambor aí. Ponha-o dentro do armário e feche a porta, ordenou-se....”(p 138)

O fato de Dibs falar pelo seu pai por meio do bater no tambor tem um sentido na história de Dibs e também no contexto dessa sessão. Entretanto, guiada pelo recorte deste trabalho, restrinjo-me a pensar no sentido do uso do tambor nesse contexto particular em que ele “fala pelo pai”.

Dibs tocou o tambor pelo seu pai de um modo peculiar. Batia no tambor enquanto pronunciava as sílabas da palavra “durma”. “Durma” parece ser uma ordem do pai (representado pelo tambor) para Dibs. A urgência dessa ordem cresce junto com o ritmo das batidas no tambor, que acelera. “Terminou com um vigoroso soar do tambor”. Dibs senta-se, inclina a cabeça, parecendo aguardar o silenciar do tambor. O tambor silencia e Dibs se levanta para guardar o tambor. Ordena a si mesmo que esse seja guardado no armário e que depois a porta seja fechada.

Dibs utilizou o tambor, nesse trecho da sessão, de modo diferente do outro relatado acima. Dibs relaciona o soar do tambor com a voz de seu pai mandando-o dormir. Representa a fala de um personagem ? seu pai ? pelo som de suas batidas no tambor. O tambor silencia. Em seguida, Dibs preocupa-se em colocar o tambor no armário e fechar a porta. É como se o tambor estivesse representando de fato o seu pai, e esse não pudesse mais estar lá presente.

Penso que esses trechos do processo psicoterápico de Dibs podem ilustrar a versatilidade de sentido do uso de elementos musicais (instrumentos e a própria voz cantada) na psicoterapia infantil. Em cada um dos relatos acima, o fazer música assume um sentido particular. Dibs faz música enquanto brinca em sua sessão de Ludoterapia.

Metodologia utilizada

Inspirada no modo como Dibs se relacionou com Axline via música, na minha própria experiência como educadora musical de crianças, e no caminho teórico que percorri para pensar a música, pretendo dar continuidade a este trabalho analisando com rigor fenomenológico o sonoro presente nos meus próprios relatos de sessões de ludoterapia. Procurarei explicitar o que se mostra no que aparece nos relatos das sessões com Marco, criança de 4 anos.

Para tanto, utilizarei relatos de sessão nos quais, como psicoterapeuta estagiária do núcleo de Psicofísica da Clinica Psicológica da PUC, descrevo as sessões de Marco, visando ser o mais fiel possível ao que vi dos fenômenos acontecidos.

O critério de escolha das sessões a serem analisadas foi a relevância dos significados dos elementos sonoros presentes nos relatos. É importante o fato de que, a partir da quarta sessão, foram introduzidos instrumentos musicais como complemento do material fornecido pela clínica para atendimento de crianças.

Escolhi predominantemente instrumentos de sopro para fazer com que o seu uso se aproximasse do mecanismo da linguagem falada. Marco tem dificuldades na fala. Também preocupei-me em introduzir pares de instrumentos para que fosse possível o diálogo sonoro de Marco comigo, ambos utilizando o mesmo instrumento musical. Os instrumentos foram:

-2 azzoos: espécie de instrumento de sopro, apito que ao invés de produzir o som somente com o assopro, é necessário cantar. O Kazzoo amplifica o som da melodia da voz, fazendo com que a vibração das cordas vocais se pareça com algum instrumento de sopro de metal, como um trompete ou um saxofone.

-2 rói-rói: instrumento de percussão que tem a forma de um martelinho, mas que não precisa encostar noutra superfície para produzir o som. Basta o gesto do martelar para que o som apareça.

-2 apitos de sirene

-2 apitos de pássaro

-2 apitos de trem

Das seis sessões realizadas com Marco, foram selecionadas: a primeira; a terceira (anterior à decisão de inserir os instrumentos como material lúdico) e a quinta (a segunda sessão com instrumentos musicais).

Apresentação do caso

Marco é um menino de 4 anos que chegou à Clinica da PUC trazido pela mãe. Passou inicialmente pela triagem, onde a mãe manifestou a queixa de que o filho não fala. A mãe conta que fica muito ansiosa por não compreender o que Marco diz. Afirma que o filho foi diagnosticado por médicos e que o seu problema com a linguagem era emocional. A mãe conta que Marco andou com um ano e meio, começou a falar com 2 anos e quatro meses, chupou e chupa dedo, tomou mamadeira até os dois anos, tem asma e adenóide.

Foi encaminhado para o atendimento fonoaudiológico que iniciou em 26/02/96. Segundo a avaliação da fonoaudióloga, “M apresenta várias substituições e omissões fonêmicas, que prejudicam significativamente a inteligibilidade da fala e comprometem o desenvolvimento da linguagem, o que já não é esperado para sua faixa etária.” “ Em relação aos aspectos de sua motricidade oral, M apresenta músculos da face hipotônicos, a língua com baixa mobilidade e tonicidade”. A fonoaudióloga afirma perceber que existe uma problemática familiar que parece colaborar para a dificuldade de Marco em falar.

Em entrevista comigo, a mãe de Marco contou que é casada com o pai de Marco. Diz que agora o relacionamento com o marido esta bom, mas que já tiveram enormes dificuldades de relacionamento. Diz que Marco já presenciou brigas sérias entre os dois. Suspeita de que esse seja o motivo pelo qual Marco não fala.

O pai de Marco é alcoólatra, a mãe está sob tratamento psiquiátrico medicamentoso, e a família passou por graves problemas financeiros e emocionais. O pai de Marco diz que está preocupado com o desenvolvimento emocional do filho e acha que ele está sofrendo com a situação da família.

Como o atendimento familiar não foi possível, o responsável pela triagem encaminhou Marco para o atendimento ludoterápico.

Análise do lugar do sonoro não verbal em três relatos de sessões de ludoterapia

Continuação...